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Aruanda e a contra-hegemonia cinemanovista

by Yann Santos

Na obra “O Capital: Crítica da Economia Política”, o teórico alemão Karl Marx analisa o modo de produção do sistema capitalista e redefine a teoria do valor-trabalho proposta por Adam Smith. Marx diz que o preço de um bem deriva do tempo despendido para produzi-lo. Em Aruanda (1960), o diretor Linduarte Noronha mostra, de forma implícita, que o valor-trabalho não se aplica em economias mais “primitivas”. 

O documentário Aruanda narra o erguimento de uma comunidade quilombola na Serra do Talhado (sertão paraibano). A região foi povoada por ex-cativos que sobreviviam da comercialização de peças artesanais. 

Mesmo em cadeias de produção menos complexas que a industrial, a divisão do trabalho ainda é nítida — e Aruanda exemplifica esse aspecto: o patriarca da família perfura o solo para o plantio de sementes de algodão e combina galhos e lama para formar uma casa; a mãe e as filhas extraem argila do solo para confeccionarem utensílios domésticos que serão vendidos nas feiras centrais. As peças passam por um longo processo de produção. Uma semana de trabalho rende, segundo o narrador do filme, de 300 a 400 cruzeiros. Em um local desassistido pelo aparelho estatal, 300 cruzeiros significa a sobrevivência ou a morte por inanição.

Aruanda pode ser descrito como uma derivação de reportagens feitas por Linduarte Noronha e pelo jornalista Dulcídio Moreira. O quilombo que ambienta a narrativa é descrito por Dulcídio como uma “longínqua favela”. A Serra do Talhado é uma região segregada das instituições políticas do Brasil — uma espécie de “Grande Sertão: Veredas” (João Guimarães Rosa). A pobreza aqui impera.

No primeiro arco do filme, Linduarte utiliza a Cantiga do Caicó (Heitor Villa-Lobos; Teca Calazans; Milton Nascimento) para descrever a fuga dos protagonistas e os primórdios da comunidade.

Ó, mana, deixa eu ir

ó, mana, eu vou só

ó, mana, deixa eu ir

para o sertão do Caicó

Eu vou cantando

com uma aliança no dedo

eu aqui só tenho medo

do mestre Zé Mariano

Mariazinha botou flores na janela

pensando em vestido branco

véu e flores na capela  

A composição encaixa-se perfeitamente com o jogo de imagens apresentado. Ainda que a letra descreva uma viagem solitária, os ex-escravos enfrentam as problemáticas sociais de forma isolada — sem a assistência das instituições brasileiras.  

Aruanda é um dos precursores do Cinema Novo. O movimento capturou e exibiu a estética da fome — contrapondo-se à estética hollywoodiana. Nomes como o de Linduarte Noronha e de Glauber Rocha apresentaram as bases para o desenvolvimento do cinema de vanguarda — ou cinema crítico — no Brasil. 

Os cinemanovistas acreditavam que as narrativas cinematográficas poderiam ajudar a alterar o status quo; que as narrativas cinematográficas poderiam ser utilizadas como um instrumento de mudança política. Parte dessa concepção vem da obra do filósofo italiano Antônio Gramsci. Para ele, a manutenção da infraestrutura (o sistema de produção capitalista) se dá através da superestrutura (a ideologia difundida pela hegemonia cultural burguesa). Essa ideia também foi desenvolvida pela Escola de Frankfurt. Seus expoentes dizem que a modernidade — o mundo da técnica — provocou o que Max Weber chamou de “desencantamento do mundo”; os mitos foram substituídos pelo imperativo tecnoburocrático.

Na Dialética do Esclarecimento, Theodor Adorno e Max Horkheimer dizem que a razão instrumental (o condicionamento das massas às práxis capitalistas) se reproduz através da indústria cultural; a heteronomia (Immanuel Kant) das massas se dá, segundo eles, por meio dos aparelhos coercitivos da cultura.

A cultura sempre contribuiu para domar os instintos revolucionários, e não apenas os bárbaros. A cultura industrializada faz algo a mais. Ela exercita o indivíduo no preenchimento da condição sob a qual ele está autorizado a levar essa vida inexorável (Dialética do Esclarecimento).

Sob a perspectiva ontológica, os marxistas modernos e os marxistas clássicos são sujeitos formados por uma natureza única — a priori, eles partem do mesmo pressuposto. O que os difere é o método contra-hegemônico empregado. De acordo com os marxistas modernos, a reconfiguração social passa pela reconfiguração da cultura. Já em Marx, a estrutura da realidade será modificada através da insurgência do proletariado (revolução proletária) — parafraseando o filósofo, o sistema capitalista será subvertido através da luta armada. 

Apesar das diferenças metodológicas, o materialismo histórico-dialético corporifica todas as correntes marxistas. 

Meu método dialético — diz Marx — não só é fundamentalmente diverso do método de Hegel, mas é, em tudo e por tudo, o seu reverso. Para Hegel o processo do pensamento que ele converte inclusive em sujeito com vida própria, sob o nome de idéia, é o demiurgo (criador) do real e este, a simples forma externa em que toma corpo. Para mim, o ideal, ao contrário, não é mais do que o material, traduzido e transposto para a cabeça do homem (O Capital).

Para os socialistas científicos, como Karl Marx, não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência (A Ideologia Alemã). No livro Manifesto Comunista, o filósofo diz ainda que o motor da história é a luta de classes — um fator material.

Aruanda absorve parte desses elementos e expõe a pobreza característica do sertão nordestino. Apesar de destacar a precariedade técnica do filme, o crítico cinematográfico Jean-Claude Bernardet diz que Aruanda “é importante porque, além de ser uma provocação e um estímulo, além de tratar de assunto brasileiro, o faz de uma maneira que pode se tornar um estilo e dar ao cinema brasileiro uma configuração particular, o que este, ao que eu saiba, nunca possuiu, nem de longe.” (O Estado de S.Paulo, 1961). O curta-metragem revolucionou o cinema crítico e é considerado um marco na história do documentário expositivo.

Referências bibliográficas

MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política.

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MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista.

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MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã.

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ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento.

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SIQUEIRA, Vinicius. Colunas Tortas. A Dialética do Esclarecimento — Adorno e Horkheimer: uma resenha.

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ZANIN, Luiz. O Estado de S.Paulo. Aruanda: os 50 anos de um filme clássico.

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LABAKI, Amir. Introdução ao Documentário Brasileiro.

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ALVIM, Luíza Beatriz. A música de Villa-Lobos nos filmes de Glauber Rocha dos anos 60: alegoria da pátria e retalho de colcha tropicalista.

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